Governo não consegue mais agradar mercado e elevar gasto ao mesmo tempo
Sílvio Guedes Crespo
Os protestos se espalham pelo Brasil num momento em que o governo já não consegue mais agradar o mercado e ao mesmo tempo manter o ritmo de expansão dos gastos sociais e ainda acomodar no orçamento as demandas da ampla coligação de partidos aliados, modelo que marcou os oito anos da administração Lula.
Nos dois mandatos do ex-presidente, o dinheiro que o governo federal tira do orçamento para pagar juros passou de R$ 59 bilhões em 2002 para R$ 92 bilhões em 2010 (valores corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo, como os demais deste texto). A inflação anual caiu de 12,5% para 5,84% no mesmo período.
Enquanto isso, o câmbio oscilou sem grandes solavancos, com exceção de 2008, quando estourou a crise bancária dos Estados Unidos.
Esses três pontos – reserva de dinheiro para juros (o chamado superávit primário), inflação na meta e câmbio flutuante – são a receita básica para um governo se manter em paz com o mercado, ou seja, com bancos e grandes investidores. Os economistas chamam isso de ''tripé'' macroeconômico.
Paralelamente, o governo subsidia empresários. Toma dinheiro emprestado no mercado a juros altos e empresta a companhias a juros mais baixos, por meio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Os desembolsos dessa instituição passaram de R$ 69 bilhões em 2002 para R$ 197 bilhões em 2010.
Investimento social
Mesmo agradando banqueiros e empresários, o governo Lula conseguiu colocar dinheiro na a área social.
O orçamento do programa Bolsa Família avançou de R$ 6 bilhões em 2003 para R$ 17 bilhões em 2010. O do Ministério da Saúde, de R$ 45 bilhões para R$ 70 bilhões; o da Educação, de R$ 42 bilhões para R$ 82 bilhões (sempre em valores atualizados pelo IPCA).
Ainda, o salário mínimo subiu 155% no governo Lula, bem acima da inflação, que foi de 60%. Com dinheiro para bancos, empresas e para a área social, Lula deixou a presidência em 1º de janeiro de 2011 com aprovação de 87%, um recorde mundial.
Chuva de dólares
Esse dinheiro todo começou a chegar ao Brasil pelas exportações. Produtos básicos, o ponto forte do país, ficaram mais caros no mercado internacional, em grande parte por causa do crescimento econômico da China. A venda de soja e de carne bovina ao exterior sextuplicou de 2001 a 2011, em valores. A do minério de ferro ficou 14 vezes maior.
A entrada de dólares no Brasil, combinada com a disciplina do governo para manter o tripé macroeconômico, animou investidores estrangeiros, que quintuplicaram seus aportes anuais no país na era Lula.
Ao mesmo tempo em que chegava dinheiro do exterior, o mercado interno crescia e gerava empregos formais e aumento de renda. Tudo isso facilitou a expansão do crédito e também o consumo das famílias. Consequentemente, a arrecadação de impostos também subiu.
Maus ventos
Hoje, a China já não cresce mais como antes, e a Europa, um dos grandes importadores de mercadorias brasileiras, não sai da crise.
Com isso, os produtos básicos ficaram mais baratos no mercado internacional. As exportações de minério de ferro, por exemplo, diminuíram 25% em 2012. Os investimentos estrangeiros diretos não caíram, mas também não subiram.
O emprego e a renda continuam em patamar historicamente alto. Mas, como a produtividade das empresas não aumentou na mesma proporção, a margem de lucro, especialmente da indústria, ficou prejudicada no ano passado. Investir na produção deixou de ser tão atraente.
Menos dinheiro
O consumo se mantém forte. Porém, a inflação aumentou e corrói o poder de compra de parte da população. Os preços medidos pelo IPCA subiram 6,59% nos 12 meses encerrados em março, sendo que o teto da meta do governo é de 6,5% no acumulado de janeiro a dezembro.
Contra esse problema, o Banco Central aplica seu remédio tradicional, que é o aumento de juros, o que significa mais despesas para o setor público.
O governo tentou reduzir o custo das empresas cortando tributos sobre a folha de pagamento. Só que a economia está demorando para reagir, de modo que a arrecadação de impostos sobe menos que as despesas públicas. União, Estados e municípios ficam relativamente com menos dinheiro.
Nessas condições, o poder público não consegue mais agradar o setor financeiro e os grandes empresários ao mesmo tempo em que aumenta investimentos na área social. O governo, no fim do ano passado, teve que recorrer a uma manobra contábil para tentar cumprir a meta de dinheiro reservado para pagar juros – o que foi mal visto por investidores.
Partidos
Enquanto o governo atendia a todos, os partidos foram ficando mais parecidos. Quem era pró-mercado prometeu aumentar o Bolsa Família e teve vergonha de defender privatizações. Quem tinha histórico mais socialista seguiu uma política monetária ortodoxa.
O eleitor possivelmente se confundiu com isso nesses anos todos, mas a economia ia bem. Agora que não há mais dinheiro público sobrando, os partidos terão que definir melhor de que lado estão.
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Falando nisso, uma palavra sobre os atos. É notável que tem se difundido entre os manifestantes, com força e agressividade, uma visão antipartidos. Não me parece uma postura democrática.
Impedir que partidos se expressem é típico de ditaduras. Engana-se quem pensa que pode haver democracia sem liberdade de expressão e de associação. Não existem hoje sistemas políticos sem partidos. Se achar que viu algum, é porque se trata de sistema de partido único, ou seja, é uma ditadura.